Eurico Carrapatoso Lobo Diogo - Lobo Diogo ('éclatant' Abel Pereira, Bernardo Silva, Trompas da ONP)

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Pequena nota explicativa

Esta obra foi escrita no verão de 2002. Talvez seja essa uma das razões pelo facto de ela estar eivada de um certo optimismo estival. Foi literalmente composta em mangas de camisa, na lassidão, na maré vasa do tempo. Não queiram imaginar o prazer que me deu, chegado que estou aos 40 anos de idade, poder começar uma obra com o mais memorial dos incisos era uma vez, e ainda por cima, era uma vez um lobo, esse animal mitológico que povoa o imaginário humano desde o maravilhoso infantil até aos pesadelos adultos da licantropia. O lobo não é apenas um mamífero. É um símbolo que espreita.

Baseei-me na história original do escritor António Pires Cabral, O lobo Diogo e o mosquito Valentim. Esta história colheu-me desde o início por conter duas lições muito inspiradoras, confrontadas em dois campos semânticos contrastantes e expressivamente justapostos. Um, de estirpe nobilíssima, parabólico: os homens não se medem aos palmos. Outro, de estirpe pragmática, património do anedotário: Obrigado, não! Toca a pagar o servicinho. Desta confrontação entre o bíblico David vs Golias e o proverbial Lazarilho de Tormes resulta uma faísca saborosa, o fulminante que detonou estes quarenta minutos de música.

Em duas penadas, trata-se de um lobo que, para além de estúpido, é caprichoso, prepotente e facínora. Reina na floresta num regime de opressão arbitrária. Entre outros caprichos, tem o vício de jogar à lambada com os animais. Dá e leva, mas vence sempre porque é o mais forte. O jogo está desde logo inquinado por esta deslealdade. E ninguém escapa: velhos e novos, miúdos e graúdos. É nesse jogo idiota que Diogo sublima toda a sua força bruta. É por ali que ele decanta a sua opressão, maltratando a bicharada. Alguns animais, uns melhor, outros pior sucedidos, vão-lhe fazendo frente.
Policarpo, o porco-espinho, por exemplo, consegue criar um estratagema muito inteligente por forma a que Diogo lhe dê, em vez de uma lambada, um pontapé no rabo. E consegue. Primeiro pede à raposa Rosa que lhe ponha ligaduras nas patas dianteiras. Depois procura o lobo para lhe dar uma lição. Quando o encontra propõe-lhe jogar ao pontapé, já que está com as mãos ligadas. Diogo acha a ideia “maguenífica” para variar. Policarpo assenta-lhe primeiro e com toda a sua força ruminada, um pontapé. Agora é a vez de Diogo: depois de tentear o seu lance, arruma-lhe com toda a força um pontapé. Mas esqueceu-se daquele pequeno pormenor muito espinhudo. Diogo foi em três patas para o hospital. Entre os bichos houve grande festa. Policarpo foi celebrado. Mas...Diogo curou. E logo ao vício tornou. Nem o pobre Minervino, o sábio mocho, poupou.
É neste cenário de desânimo que surge o agudíssimo mosquito Valentim, intrépido, zunindo com uma atitude de “quantos são, quantos são?”. Os bichos recebem-no com frieza e desdém (aliás, convenhamos muito sinceramente: para além de São Francisco de Assis, haverá mais algum ser que não receba um mosquito sem ser com uma mão em riste?). Pois será ele, precisamente, o mais pequeno dos animais, que irá resolver a questão. Ele será o libertador. Arruma a questão através de um ataque de cócegas: mete-se numa narina de Diogo, esvoaçando, esvoaçando, esvoaçando, multiplicando por mil e mais mil as cócegas. E é no abismo das cócegas que Diogo cai. E é nesse vórtice que Diogo desaparece para sempre.
Agora os animais, perdida que foi uma boa oportunidade de não o desdenharem, perdida que foi uma boa oportunidade de não o hostilizarem, celebram Valentim, o libertador, celebram o desassombro de pequeno David, na proverbial volubilidade de opinião popular. Vox populi no seu melhor. Agora Valentim já é o herói: eis o triunfo da carneirada. Mas Valentim declina o convite para ser o novo rei. Valentim não é político porque fala sempre a verdade e não faz promessas que não possa cumprir. Dos bichos apenas quer uma gota de sangue de vez em quando.

Esta obra é uma encomenda da Orquestra Nacional do Porto e é dedicada a duas pessoas: ao promotor do projecto e director da O.N.P., Jorge Vaz de Carvalho e, last but not least, ao autor da história, raiz inicial e irredutível desta aventura, meu primo António Pires Cabral.

Eurico Carrapatoso, Lisboa, 7 de Novembro de 2002
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