Renato Souza // Memórias de Pedro Ferreiro

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O meu avô paterno era ferreiro. Pedro era o seu nome.
Desde que eu me reconheço por gente, ele e minha vó tinham uma pequena Ferraria às margens da BR 392, no interior de Pelotas.
Mas na sua juventude e durante boa parte da criação dos filhos, eles mantinham a Ferraria num corredor de tropa no interior de Canguçu. Era um destes lugares que funcionava como um parador para os tropeiros e carreteiros que vinham de Piratini, Santana da Boa Vista, Caçapava, Encruzilhada do Sul, e iam para Pelotas, Rio Grande, São Lourenço ou Camaquã.
Ali havia um destes armazéns sortidos de interior, um espaço para o descanso dos animais e para o acampamento dos viajantes, e tinha a Ferraria do meu vô. Muitos ali pernoitavam enquanto ele revisava a ferragem das carretas e ferrava os cavalos.
Quando eu conheci o meu vô, as tropas e carreteadas já não existiam mais na região, haviam sido substituídas pelos caminhões e caminhonetes de hoje em dia, mas eu cresci ouvindo as histórias daquele tempo. E o meu avô era cheio de histórias. Dava para escrever um livro com elas. Então, mesmo não tendo vívido aquele tempo, eu cresci com este universo simbólico bem vivo na minha infância e juventude.
E quando o meu vô morreu – já fazem duas décadas - eu acabei fazendo esta milonga para ele falando daquele tempo e tentando trazer aquele universo simbólico para dentro da música.
Apesar desta canção ter quase 20 anos, eu nunca a apresentei em público nem gravei qualquer versão dela. Eu achava ela muito pessoal, pois compus ainda sob o luto da sua morte, e acabei guardando só para mim e para a família dos meus avós.
Mas há uma outra razão muito íntima...
Outro dia eu estava editando este vídeo no computador, e minha filha caçula perguntou o que era. Disse-lhe que era uma música que fiz para o meu avô quando ele morreu, e ela perguntou, "e tu só fez prá ele, não fez prá vó também?". Orgulho do pai, tem 13 anos e já luta contra a sociedade patriarcal.
E então tive que contar a ela a história desta música.
Ocorre que eu estava presente quando o meu avô faleceu.
Naquela noite, eu e a minha tia Irene estávamos na casa deles. Ele estava acamado e o seu destino já era esperado, mas aconteceu um episódio incrível poucos minutos antes dele partir. Era mais de meia noite, eu e a tia estávamos na cozinha e pegamos uma Bíblia muito antiga que eles tinham na estante, para fazermos uma leitura e umas orações (eles eram muito religiosos, e tinham várias). A vó estava num dos quartos e o vô no outro. Quando abrimos a Bíblia, dentro dela havia uma folha de papel dobrada e amarelada pelo tempo. Desdobramos, era um poema escrito a mão. Lemos, e vimos que se tratava de uma poesia gaúcha em que o poeta falava do seu pai, que havia partido "prá o velho pago do Além", como dizia em um dos versos. Incrível é que parecia que os versos tinham sido escritos para o meu avô, que também estava partindo. Depois descobri que era um poema do Jayme Caetano Braum escrito para o seu pai, que havia falecido. Como aquele poema foi parar ali e porquê pegamos aquela Bíblia e abrimos justo naquela página ainda não sei explicar, mas o fato é que, quando terminamos de ler, fomos até o quarto e em poucos instantes o vô deu o seu último suspiro.
Este episódio e o conjunto de "coincidências" que ele contém ficou gravado em minha mente de maneira bem forte, e mesmo não sendo um sujeito muito religioso, por muito tempo eu quis guardar aquela Bíblia e aquele poema comigo. Recentemente minha tia me deu os dois, e eu cuido deles com muito carinho.
Um pouco em função disso é que eu escrevi esta música com a letra no mesmo formato e métrica que o Jayme usava em suas pajadas, e com o ritmo da milonga, muito próprio a este tipo de poesia.
E também por isso eu a guardei por tanto tempo.
Mas este período de distanciamento social que estamos vivendo, tem me ensinado que certas coisas não devem ficar guardadas por tanto tempo, especialmente se foram feitas com amor, e se falarem com amor das coisas e das pessoas que a gente ama.
Então, eis a milonga Memórias de Pedro Ferreiro, com introdução do instrumental Avós, outra peça que devo desenvolver em breve.
Gravada na sala de casa, em plena pandemia, com um pequeno estúdio caseiro que tenho e uma câmera de celular
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Olá Renatão. Viva o vô Pedro! Guardar para ouvir nos momentos nobres do sossego em casa... Abraços pro pessoal aí!

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